Resumo: Este artigo promove uma análise interdisciplinar da formação e legitimação do poder estatal, entrelaçando filosofia, política e psicologia. Da antiguidade à contemporaneidade, a evolução dessas dinâmicas é explorada, destacando a transição das bases mitológicas para as contribuições de pensadores modernos como Hobbes e Weber. Integrando a obra de Freud, analisamos os mecanismos psíquicos em regimes autoritários, populistas e paternalistas, aplicando-os à formação do Estado. A identificação narcísica e a participação ativa dos cidadãos na democracia emergem como elementos-chave para a coesão social e a legitimidade do poder estatal. Este estudo interdisciplinar oferece uma visão abrangente das complexas relações entre indivíduo, coletividade e Estado, contribuindo para uma compreensão mais completa das questões contemporâneas.
Palavras-chave: Direito Constitucional, Filosofia do Direito, Teoria do Estado, Legitimidade do Poder Estatal, Psicanálise, Psicologia das Massas.
Abstract: This article promotes an interdisciplinary analysis of the formation and legitimation of state power, intertwining philosophy, politics, and psychology. From antiquity to the present day, the evolution of these dynamics is explored, emphasizing the transition from mythological foundations to the contributions of modern thinkers such as Hobbes and Weber. By incorporating Freud's work, we examine psychic mechanisms in authoritarian, populist, and paternalistic regimes, applying them to state formation. Narcissistic identification and active citizen participation in democracy emerge as key elements for social cohesion and the legitimacy of state power. This interdisciplinary study provides a comprehensive perspective on the intricate relationships among individuals, communities, and the state, contributing to a fuller understanding of contemporary issues.
Keywords: Philosophy of Law, State Theory, Legitimacy of State Power, Psychoanalysis, Mass Psychology.
Sumário: 1 - TEORIA DA LEGITIMIDADE DO ESTADO; 2 – REFLEXÕES SOBRE A PSICOLOGIA DAS MASSAS; 3 - A LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL NA PERSPECTIVA FREUDIANA
No cenário da formação e legitimação dos Estados ao longo da história, as raízes ideológicas e as dinâmicas sociais desempenharam papéis cruciais. Desde os primórdios, a legitimidade do poder estatal esteve intrinsecamente vinculada à compreensão coletiva de valores, normas e à figura central do líder.
De início, o intento inicial do presente trabalho foi estabelecer um diálogo entre a vasta obra do constitucionalista Paulo Bonavides com a intrigante obra de Sigmund Freud, especialmente no que ambos autores lecionam sobre a legitimidade da Constituição, das leis e do Poder Estatal associados a manifestação das subjetividades no coletivo.
Todavia, constatou-se que uma análise acadêmica desta natureza demanda compreender a evolução das concepções basilares de Legitimidade do Poder Estatal, sendo imprescindível retomar, na obra de Bonavides, desde a antiguidade, onde mitos e conquistas territoriais eram fundamentais, até o advento da sofística na Grécia antiga, e posteriormente, na influência marcante de pensadores como Sócrates, Platão, Aristóteles, Hobbes e Weber.
Com este robusto background teórico, no primeiro tópico delineia a transição do poder constituinte fundamentado em mitos para uma abordagem mais ética e filosófica, especialmente sob a influência de Sócrates, que defendia a busca pela verdade e conhecimento como fundamentos para a justiça. A legitimação das leis, sob essa ótica, tornou-se intrinsicamente ligada à ética e ao conhecimento. A análise se estende à modernidade, com Hobbes e Weber, destacando como o contrato social e a legalidade racional moldam a aceitação das leis nos Estados contemporâneos.
Diz-se por aí que Freud tudo explica. Com a manifestação das subjetividades coletivas debaixo das normas tácitas e expressas do Estado não seria diferente. Nessa toada, o segundo tópico direciona o foco para a "Psicologia das Massas e a Análise do Eu" de Freud, explorando como as dinâmicas coletivas influenciam regimes autoritários, populistas e paternalistas. A identificação narcísica, a manipulação emocional e a busca por lideranças paternalistas são examinadas em profundidade. A obra de Freud é então expandida para compreender não apenas regimes específicos, mas também a formação e legitimação do Estado em sua totalidade.
Na parte final, a obra de Freud é transposta para a esfera democrática, destacando a participação ativa dos cidadãos na formação do Estado e na legitimidade do poder. A identificação com valores e lideranças políticas é considerada crucial, refletindo na coesão social e na aceitação voluntária das leis e da constituição. A psicologia das massas emerge como uma ferramenta multifacetada, proporcionando uma compreensão mais profunda das complexas relações entre o indivíduo, a coletividade e o Estado em sociedades democráticas contemporâneas.
Este artigo busca, portanto, promover uma análise crítica e abrangente das dinâmicas que permeiam a formação e a legitimação do poder estatal, integrando aspectos filosóficos, políticos e psicológicos.
Contrariando aquela academia engessada pelas normas de metodologias, preferimos dizer o que compreendemos a partir da revisão bibliográfica ao invés de nos limitar a comentar citações. De certo, lançamos mão desse recurso pontualmente, em casos indispensáveis, para fundamentar, complementar e enriquecer o texto.
Ao examinar a evolução dessas dinâmicas ao longo do tempo, almejamos lançar luz sobre os fundamentos que sustentam a legitimidade do poder estatal nas sociedades contemporâneas.
1 - TEORIA DA LEGITIMIDADE DO ESTADO
Na antiguidade, a formação dos Estados estava muitas vezes vinculada a conquistas territoriais e ao estabelecimento de sistemas políticos que buscavam assegurar a estabilidade e a ordem. Nesse contexto, o poder constituinte emergia frequentemente de líderes carismáticos ou de assembleias que representavam diferentes estratos sociais. No entanto, a legitimidade desses Estados era muitas vezes fundamentada em concepções mitológicas, como o direito divino dos reis.
O advento da sofística na Grécia antiga trouxe uma mudança paradigmática na compreensão do Direito e do Estado. Insta esclarecer que deve-se
Considerar os sofistas ramo orgânico da evolução filosófica, como fazem habitualmente nossos compêndios de história filosófica grega, foi sempre algo estranho e ambíguo, posto que tradicional e tácito. (Jeager,1954 p.337)
Assim, os sofistas questionaram as bases tradicionais da moral e do direito, propondo uma abordagem mais relativista e pragmática. Protágoras, por exemplo, afirmava que "o homem é a medida de todas as coisas", destacando a subjetividade inerente às normas e valores.
Sócrates, (BONAVIDES, 2004), por sua vez, desenvolveu uma abordagem ética e filosófica que influenciaria profundamente o pensamento jurídico. Contrariamente aos sofistas, Sócrates buscava uma verdade objetiva e universal nas questões morais. Sua compreensão filosófica do Direito fundamentava-se na ideia de que a justiça não poderia ser separada do conhecimento. Sócrates defendia a importância da virtude e do conhecimento para uma sociedade justa, questionando e dialogando para conduzir as pessoas à reflexão sobre suas próprias crenças e valores.
A legitimidade das leis (BONAVIDES, 2004), sob a influência de Sócrates, tornou-se intrinsecamente ligada à justiça e ao conhecimento. Sua abordagem ética influenciou pensadores posteriores, como Platão, que desenvolveu teorias sobre a formação de um Estado ideal e a necessidade de governantes filósofos. Aristóteles, discípulo de Platão, propôs a ideia de que a legitimidade política deveria ser fundamentada na busca do bem comum.
Assim, a evolução do pensamento desde a Idade da Sofística até Sócrates moldou concepções mais profundas sobre a legitimidade das leis. (JEAGER,1954) A busca pela verdade, virtude e conhecimento influenciou a filosofia do Direito, promovendo a ideia de que as leis deveriam refletir princípios éticos universais para serem legitimadas. Este legado filosófico continua a desempenhar um papel crucial na compreensão contemporânea da legitimidade das leis e na construção de Estados baseados em princípios éticos e morais sólidos.
A legitimidade das leis é um conceito crucial para a compreensão da ordem social e política em uma sociedade. Nesse sentido, Bonavides (2004, p.327) leciona:
A legitimidade se subsumira por inteiro na legalidade, por inteiro, na legalidade, de sorte que ultrapassa a sociedade feudal e vencido o poder de realeza absoluta, já não havia ligar desde o Estado Liberal para o jusnaturalista primeiro grau, cujas funções, concluída a tarefa institucionalizadora, expira após a queda do sistema onde o poder não se limitava e onde o homem, pelo aspecto político, não era sujeito mas coisa, e não se alçado à cidadania se conservava súdito, ou seja, não se pudera afirmar como agente governante ou partícipe na formação da vontade estatal.
Assim, sendo para Bonavides (2004, p.326) a legitimidade “um problema de consenso”, pode-se entender que legitimidade se fundamenta na institucionalização de uma aceitação manifesta na subjetividade coletiva ao reconhecimento da autoridade das leis por parte dos cidadãos. Em outras palavras, uma lei é considerada legítima quando é percebida como justa, equitativa e em conformidade com os valores e normas compartilhados pela comunidade.
No contexto da filosofia política, o pensamento de Thomas Hobbes, expresso em sua obra "Leviatã", é relevante para a discussão sobre a legitimidade das leis. Hobbes argumenta que a legitimidade das leis e do poder estatal decorre do contrato social, no qual os indivíduos abdicam de parte de sua liberdade em troca de segurança e ordem proporcionadas pelo Estado soberano, o “espinhoso tema da legitimidade do poder político abrange uma literatura diminuta” nesse sentido, é baseada no consentimento dos governados em obedecer às leis em prol da preservação da paz e da estabilidade social, sendo que esse tema corriqueiramente retorna a mente dos legisladores, políticos e pensadores sociais (Bonavides, 2006, p.129-131).
Max Weber, sociólogo alemão, também contribuiu para a compreensão da legitimidade das leis em sua obra "Economia e Sociedade" nos trouxe à ciência política um viés sociológico. Weber distingue três tipos de legitimidade: tradicional, carismática e legal-racional (Bonavides, 2006, p.126). No contexto do Estado moderno, a legitimidade legal-racional é de particular importância. Ela se baseia na crença na legalidade das normas e instituições, ou seja, as leis são consideradas legítimas porque foram estabelecidas de acordo com procedimentos formais e racionais.
Weber argumenta que a burocracia moderna é um componente essencial para a legitimidade legal-racional, uma vez que ela assegura a aplicação consistente das leis (Bonavides, 2006). A racionalidade burocrática e a legalidade são fundamentais para a aceitação generalizada das leis e do poder estatal, conferindo-lhes legitimidade aos olhos dos cidadãos.
Ambas as obras, "Leviatã" de Hobbes e os escritos de Weber, destacam a importância do consentimento e da racionalidade na legitimação do poder estatal e de suas leis (Bonavides, 2006). Enquanto Hobbes enfatiza o contrato social e a segurança como fundamentos da legitimidade, Weber destaca a legalidade racional e a burocracia como elementos essenciais para a aceitação das leis por parte da sociedade. Em conjunto, essas perspectivas oferecem insights valiosos sobre a complexa questão da legitimidade das leis em contextos políticos diversos.
O Estado, entidade soberana que detém autoridade sobre um território e sua população, é conceituado por meio de três elementos fundamentais: Povo, Território e Poder. Esses elementos, interligados e interdependentes, formam a estrutura básica que constitui as bases do ordenamento jurídico de uma nação.
O povo é a base humana do Estado, representando a coletividade que compartilha laços históricos, culturais e sociais dentro de um território específico. A população de um Estado não é apenas um aglomerado de indivíduos, mas sim uma comunidade que compartilha uma identidade comum, moldada por valores, tradições e aspirações. O povo é, portanto, o titular dos direitos e deveres que regem a convivência dentro do Estado, sendo parte integrante e ativa na construção do destino coletivo.
O território representa o espaço geográfico sobre o qual o Estado exerce sua soberania. Ele não é apenas uma delimitação física, mas também inclui os recursos naturais e as fronteiras que definem a extensão do controle estatal. O território é um componente vital para a identidade de um Estado, sendo palco das interações sociais, econômicas e políticas que moldam a vida de sua população (Bonavides, 2006). A delimitação territorial é fundamental para a organização e gestão da sociedade, estabelecendo as bases para o exercício do poder e a promoção do bem-estar comum.
O poder é a capacidade do Estado de impor sua vontade e exercer controle sobre seu território e população. Esse elemento é a manifestação prática da soberania estatal, envolvendo a criação e aplicação das leis, a administração da justiça, a defesa da ordem e a promoção do bem-estar coletivo. O poder estatal é exercido por meio das instituições governamentais, que representam a autoridade legítima responsável por tomar decisões em nome da sociedade.
Para encerrar, Paulo Bonavides (2006), destaca a nação como um elemento subjetivo materializado pela unidade de território, costumes e língua, indo além da mera identificação jurídica, sendo a nação é formada por um grupo de pessoas que compartilham laços históricos, culturais e afetivos, unidos por uma consciência de pertencimento a uma mesma comunidade. A Repisa-se que nação é uma construção genuinamente subjetiva Paulo Bonavides (2004), que se manifesta na solidariedade, na consciência de uma herança comum e na busca por um destino coletivo.
Essa é uma breve síntese do que o constitucionalista Paulo Bonavides traz obra acerca da Legitimidade do Poder Estatal. Conforme se vê, o Jurista não ousa nos indicar de forma contundente e assertiva sobre a gênese da legitimidade do poder estatal, mas nos lança valiosas pistas, a partir de uma visão holística composta por suas lições de Filosofia, Sociologia, História, Ciência Política e Direito Constitucional.
Em suma, os elementos do Estado - Povo, Território e Poder - formam a base estrutural que define a existência de uma entidade soberana. A compreensão desses elementos é crucial para a análise e a compreensão das dinâmicas políticas, sociais e culturais que moldam a vida em uma nação.
2 – REFLEXÕES SOBRE A PSICOLOGIA DAS MASSAS
Antes de aprofundarmos a teoria Freudiana sobre a "Psicologia das Massas e a Análise do Eu", é essencial situá-la em um contexto mais amplo, considerando também as contribuições de Gustave Le Bon em sua obra "Psicologia das Multidões". Ambos os trabalhos oferecem uma profunda incursão nas complexas dinâmicas que regem o comportamento coletivo, revelando insights valiosos sobre como as massas se configuram e influenciam a psique individual.
Enquanto Le Bon explora o fenômeno das multidões, destacando sua influenciabilidade e crédula natureza acrítica (Pereira, 2020), Freud adentra nas profundezas da mente coletiva, examinando a identificação narcísica e a relação entre amor e ódio na formação de grupos. Ambos os autores lançam luz sobre a poderosa influência das emoções coletivas e a dinâmica entre líderes e liderados, oferecendo perspectivas complementares que enriquecem nossa compreensão das massas e sua interação com o poder político e social.
"Psicologia das Massas e a Análise do Eu", obra seminal de Sigmund Freud, lançada em 1921, oferece uma profunda incursão nas complexas dinâmicas que regem o comportamento coletivo. O autor, ao explorar os mecanismos psíquicos subjacentes à formação de grupos, busca compreender como as massas se configuram e, consequentemente, como influenciam a psique individual. Freud ressalta:
[...] primeiro, a identificação é a mais primordial forma de ligação afetiva a um objeto; segundo, por via regressiva ela se torna o substituto para uma ligação objetal libidinosa, como que através da introjeção do objeto no Eu; terceiro, ela pode surgir a qualquer nova percepção de algo em comum com uma pessoa que não é objeto dos instintos sexuais (FREUD, 1921, p.65).
Freud discute a noção de uma mente coletiva que emerge quando os indivíduos se unem em um grupo, destacando a tendência das massas à identificação com uma figura líder. Esse fenômeno, conhecido como 'identificação narcísica', sugere que as massas buscam uma figura que personifique seus anseios e desejos reprimidos, conferindo-lhes uma sensação de poder e pertencimento. Mas afinal, o que são as massas? Freud descreve as massas com as seguintes características:
A massa é extraordinariamente influenciável e crédula; é acrítica, o improvável não existe para ela. Ela pensa por imagens que se evocam umas às outras associativamente, tal como elas se apresentam ao indivíduo durante os estados de livre fantasiar [freien Phantasierens], e que não são medidas por nenhuma instância racional no que diz respeito à conformidade com a realidade. Os sentimentos da massa são sempre muito simples e muito exagerados. A massa não conhece, portanto, nem a dúvida nem a incerteza (Freud, 1921, p. 114-115).
E adiciona que:
Ela chega muito rapidamente a extremos; uma vez enunciada uma suspeita, esta se transforma para ela, de imediato, em certeza irrefutável; um gérmen de antipatia torna-se ódio selvagem. Inclinada ela mesma a todos os extremos, a massa também só é excitada por estímulos desmedidos. Quem quiser influenciá-la não necessita de nenhuma dimensão lógica em seus argumentos; ele tem de pintar as imagens mais fortes, exagerar e repetir sempre a mesma coisa. Como a massa não tem dúvidas sobreo que é verdadeiro ou falso, e ao mesmo tempo tem consciência de sua grande força, ela é tanto intolerante quanto crente na autoridade. Ela respeita a força e só se deixa influenciar moderadamente pela bondade, que, para ela, significa uma espécie de fraqueza. O que ela exige de seus heróis é a força, até mesmo a violência. Ela quer ser dominada e reprimida e temer seu mestre. No fundo inteiramente conservadora, ela tem uma profunda aversão por todas as inovações e progressos e um respeito ilimitado pela tradição. (Freud, 1921, p. 115)
Freud destaca a tendência das massas à identificação narcísica, em que os indivíduos buscam uma figura líder que personifique seus anseios e desejos reprimidos. Há, na teoria freudiana, uma curiosa relação entre dois elementos cruciais na conjuntura da massa, sendo eles o amor e o ódio. Dessa forma, Para a manutenção de um espírito de união na massa, é essencial que exista um escoamento do ódio. Essa constatação levou Freud a desenvolver em sua teoria o que denominou como narcisismo das pequenas diferenças.
Não deve ser menosprezada a vantagem de um círculo cultural mais restrito, a de permitir à pulsão encontrar uma saída na hostilização daqueles que se acham fora dele. Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade. Uma vez, ocupei-me com o fenômeno de que justamente comunidades vizinhas e até próximas umas das outras em outros aspectos atacam-se e ridicularizam--se, como os espanhóis e os portugueses, os alemães do norte e os do sul, os ingleses e os escoceses etc. Dei a esse fenômeno o nome de “narcisismo das pequenas diferenças” [...] Passamos a reconhecer nele uma satisfação conveniente e relativamente inofensiva da tendência à agressão, através da qual é facilitada a coesão dos membros da comunidade. (Freud, 1930, p. 292).
Essa identificação pode ser relacionada à formação do Estado, onde a figura do líder ou as ideias do Estado tornam-se pontos de identificação para a população.
Eis aqui o que acreditamos ser a chave da legitimidade do poder estatal, materializado na força que sustenta a Constituição de um Estado: O elo afetivo, libidinoso, narcísico constituído por relações de amor e ódio entre líderes e liderados no qual a coletividade encontra a oportunidade para escoar o ódio de cicatrizes passadas e proteger de medos presentes e futuros.
A tal “Psicologia das Massas” corresponde a soma da reprodução da psicologia individual aplicado em um contexto macro, conforme aqui Freud leciona:
Na vida psíquica do indivíduo, o outro é, via de regra, considerado como modelo, como objeto, como auxiliar e como adversário, e por isso a psicologia individual é também, de início, simultaneamente psicologia social, nesse sentido ampliado, mas inteiramente legítimo. A relação do indivíduo com seus pais e com seus irmãos e irmãs, com seu objeto de amor, com seu professor e com seu médico, logo, todas as relações que foram até agora objeto privilegiado da investigação psicanalítica, podem reivindicar ser consideradas fenômenos sociais [...] (FREUD, 1921, p. 137)
O líder do Estado pode ser visto como uma projeção dos desejos coletivos, contribuindo para a coesão social. A análise de Freud é particularmente relevante ao examinar regimes totalitários e populistas. Nos regimes autoritários, a identificação narcísica pode levar à devoção cega, fortalecendo dinâmicas de poder centralizado. Líderes populistas podem manipular as emoções coletivas para consolidar seu poder, conectando-se diretamente às aspirações e frustrações das massas. Essa dinâmica influencia a forma como as leis são formuladas e aplicadas.
Esta análise freudiana torna-se particularmente relevante ao se examinar regimes totalitários. Nos contextos autoritários, a psicologia das massas é muitas vezes explorada para explicar a submissão generalizada a líderes carismáticos, onde a identificação narcísica se converte em devoção cega, alimentando dinâmicas de poder centralizado. Destaca-se que para Freud para haver o aceite a identificação com um líder aqui subsiste de forma destacada entre líder e liderados um vínculo subjetivo de amor (Eros), conforme se vê:
[...] as relações de amor (ou, expresso de modo mais neutro, os laços de sentimento) constituem também a essência da alma coletiva. [...] evidentemente a massa se mantém unida graças a algum poder. Mas a que poder deveríamos atribuir tal feito senão a Eros, que mantém unido tudo o que há no mundo? (FREUD, 1921, p. 45).
Além disso, ao abordar regimes populistas, Freud destaca a manipulação das emoções coletivas, ressaltando como líderes podem aproveitar as aspirações e frustrações das massas para consolidar seu poder. A psicologia das massas, portanto, fornece uma lente valiosa para entender a ascensão de líderes populistas que se apoiam na emotividade coletiva para promover suas agendas políticas.
No que diz respeito aos regimes paternalistas, a análise freudiana sugere que a busca por uma figura paternal, que simbolize proteção e orientação, pode levar as massas a aceitar restrições individuais em troca de uma suposta segurança proporcionada pelo líder paternal. Esse aspecto da psicologia das massas é particularmente evidente em sistemas políticos que buscam controlar e direcionar o comportamento coletivo em nome do bem-estar geral.
A corriqueira aplicação da "Psicologia das Massas" na análise de regimes totalitários, populistas e paternalistas destaca sua relevância contínua. No entanto, é possível estender essa análise para além do campo político imediato, visando compreender a formação do Estado e a legitimidade do Poder Estatal como um todo. Ao explorar as raízes psicológicas da obediência coletiva, podemos lançar luz sobre as bases do poder político e as complexas interações entre o indivíduo e o Estado. Nesse sentido, o estudo da psicologia das massas emerge como uma ferramenta essencial para desvendar os mecanismos subjacentes à formação e sustentação das estruturas de poder em sociedades complexas.
Ao expandir a análise do texto "Psicologia das Massas e a Análise do Eu" para compreender a formação do Estado e a legitimidade do Poder Estatal, é crucial examinar como as dinâmicas coletivas moldam a estrutura política. Freud, ao explorar o papel do líder na psicologia das massas, sugere que a autoridade é muitas vezes internalizada pela coletividade, estabelecendo assim um elo entre a mente individual e a estrutura estatal.
A compreensão das massas como entidades psíquicas coletivas lança luz sobre a formação e manutenção do Estado. A identificação com o líder ou com as ideias do Estado é parte integrante da coesão social, permitindo a criação de um tecido político que sustenta a ordem e a estabilidade. Nesse contexto, o estudo da psicologia das massas se revela instrumental para desvendar as raízes da obediência e lealdade à autoridade estatal.
Além disso, ao investigar a psicologia coletiva, é possível abordar a legitimidade do Poder Estatal. A aceitação e adesão voluntária às normas e leis do Estado muitas vezes são moldadas pelas mesmas forças psicológicas que Freud descreve em sua obra. A compreensão da mente coletiva como um fator determinante na formação do Estado amplia a discussão sobre como as estruturas de poder se legitimam na psique das massas.
Na contemporaneidade, a análise da psicologia das massas pode oferecer insights valiosos para compreender as democracias modernas, onde a formação do Estado é intrinsecamente vinculada à participação ativa e à identificação da população com as instituições políticas. O estudo dessas dinâmicas coletivas, ancorado na obra de Freud, proporciona uma base teórica robusta para compreender não apenas regimes autoritários, populistas e paternalistas, mas também a construção e sustentação do Estado democrático.
Assim, ao aprofundar a análise do texto "Psicologia das Massas e a Análise do Eu", ampliamos sua aplicação para a compreensão mais ampla das estruturas políticas. A psicologia das massas emerge não apenas como uma ferramenta para decifrar os elementos autoritários, mas como um prisma valioso para explorar a dinâmica complexa entre o indivíduo, a coletividade e o Estado, proporcionando uma compreensão mais profunda da formação e legitimação do poder estatal em sociedades contemporâneas.
Ao desdobrar a análise do texto "Psicologia das Massas e a Análise do Eu" para compreender a formação do Estado e a legitimidade do Poder Estatal, é pertinente explorar a influência dessas dinâmicas psicológicas nas instituições democráticas. A participação cidadã, fundamentada na identificação coletiva, é vital para a estabilidade e eficácia das democracias modernas.
Na esfera democrática, a compreensão das massas como entidades psíquicas coletivas ganha destaque na medida em que a formação do Estado não ocorre de cima para baixo, mas sim por meio da participação ativa dos cidadãos. A identificação com valores, ideais e lideranças políticas desempenha um papel central na criação de uma coesão social que sustenta a legitimidade do Estado democrático.
A psicologia das massas, ao analisar os mecanismos de influência coletiva, oferece uma lente para entender como a opinião pública é moldada e como as decisões políticas refletem a dinâmica psicológica da sociedade. O diálogo entre as teorias de Freud e as estruturas democráticas possibilita uma reflexão crítica sobre a formação do Estado em sociedades baseadas na participação popular e na representatividade.
Além disso, ao considerar a legitimidade do Poder Estatal em contextos democráticos, é relevante explorar como a confiança e a adesão voluntária às instituições políticas são influenciadas por processos psicológicos coletivos. A compreensão da mente coletiva pode lançar luz sobre as razões pelas quais as democracias prosperam quando há um consenso geral sobre a validade das instituições e dos processos democráticos.
Portanto, ao estender a análise do texto de Freud para além dos regimes autoritários, populistas e paternalistas, abraçamos a oportunidade de explorar as nuances da formação do Estado em diferentes contextos políticos. A psicologia das massas emerge como uma ferramenta multifacetada que não apenas explica dinâmicas autocráticas, mas também enriquece nossa compreensão das complexas relações entre os indivíduos e o Estado em sociedades democráticas contemporâneas. Essa abordagem mais ampla destaca a universalidade e a relevância duradoura da obra de Freud no entendimento das dinâmicas políticas e sociais.
3 – A LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL NA PERSPECTIVA FREUDIANA
Ao explorar os mecanismos psicológicos subjacentes ao comportamento de grupos, Freud destaca a importância da identificação com valores e lideranças políticas. Essa identificação não apenas molda as crenças individuais, mas também contribui para a coesão social, formando uma base para a aceitação voluntária das leis e da constituição. Na perspectiva freudiana, a psicologia das massas revela-se crucial para compreender como os indivíduos se integram em um corpo político coletivo.
Na lição de Freud, a figura do Líder, seja qual for a suas configurações weberianas, pode ser interpretado como o Poder constituinte, Assembleia Constituinte ou o Poder Estatal propriamente dito. Bonavides (2006, p.53) nos traz que:
Trava a psicologia com a sociologia um duelo reivindicatório da simples pretensão de hegemonia à impertinência de uma eventual absorção. Se há esfera de modernidade ou atualidade no problema de relações da Ciência Política com outras ciências sociais, essa esfera pertence agora a psicólogos políticos, que intentam impor suas técnicas de investigação e operar uma redução sistemática de ciência politica a disciplina da qual procedem pela qual sempre se orientam. Aí estão os “behavioristas” para atesta-lo, formando já escola e fundando a chamada nova Ciência Política tão em voga nos Estados Unidos.
A participação ativa dos cidadãos em processos democráticos é essencial para a saúde do sistema. À medida que os indivíduos se identificam com determinados valores ou líderes políticos, eles tornam-se partes ativas na construção do Estado. Essa participação não se limita apenas ao exercício do voto, mas também inclui o engajamento cívico, o diálogo e a busca por um entendimento comum.
Todavia, esses ares de novidade, para Bonavides (2013), o estudo das massas por um viés social e psicológico ainda está longe de alcançar a idade adulta.
Por outro lado, já está solidificado o conhecimento de que que a identificação com líderes políticos e valores compartilhados não apenas fortalece a coesão social, mas também influencia a aceitação voluntária das leis e da constituição. Quando os cidadãos se identificam com os princípios fundamentais do Estado, há uma maior propensão para aceitar as normas e regulamentos, promovendo a estabilidade e a legitimidade do poder constituído.
A psicologia das massas emerge como uma ferramenta multifacetada, proporcionando uma compreensão mais profunda das complexas relações entre o indivíduo, a coletividade e o Estado em sociedades democráticas contemporâneas (Bonavides, 2006). Ela lança luz sobre os fenômenos de influência, sugestionabilidade e formação de identidade coletiva, aspectos que desempenham um papel central na legitimação constitucional em uma democracia.
Essa concepção é relativamente recente, sendo própria do século XX, no qual estabeleceu um “duelo” entre Sociologia e Psicologia para apropriarem-se da dogmática da Ciência Política. Apontando os behavioristas como os bastiões da escola da nova Ciência Política, Bonavides (2006, p.53-54) leciona que:
Temos visto como a Filosofia, o Direito e a Economia relacionaram já um elevadíssimo grau de participação no moldar da índole da Ciência Política. Houve épocas em que o pensamento crítico se inclinou fortemente a anexar aquela ciência a cada um daqueles distintos ramos do conhecimento. Cada fase histórica expos o seu figurino de influencia dominante. Nesse século , chegou a vez dos psicólogos e sociólogos, os mais recentes a quererem apropriar-se da Ciência Política fazendo hoje o que ontem fizeram os filósofos, juristas os economistas e historiadores
Portanto, ao aplicar a perspectiva freudiana à esfera democrática, reconhecemos que a psicologia das massas desempenha um papel fundamental na formação e na legitimação do poder político. A compreensão desses mecanismos psicológicos pode contribuir para o aprimoramento das práticas democráticas, promovendo uma participação cidadã mais informada e consciente, fortalecendo, assim, a base da legitimidade constitucional.
Carl Gustav Jung contribui para a psicologia das massas oferecendo uma perspectiva complementar à teoria freudiana, destacando a importância da inconsciência coletiva e dos arquétipos na formação do comportamento coletivo. Jung argumenta que as massas não são apenas influenciadas por fatores conscientes, mas também por impulsos e padrões inconscientes compartilhados, que ele chama de inconsciente coletivo.
Para Jung, o inconsciente coletivo é composto por uma série de arquétipos, padrões universais de pensamento, comportamento e emoção presentes em todas as culturas. Esses arquétipos, como o herói, a mãe, o pai, entre outros, exercem uma influência profunda sobre o comportamento humano, especialmente em situações de grande emotividade coletiva, como as que ocorrem em movimentos sociais ou políticos de massa.
Pela teoria de Jung, torna-se evidente a presença de influências psicológicas que começaram a aflorar a inconsciência coletiva da população brasileira, além da forma como os organizadores do movimento das Diretas Já utilizaram-se das próprias características de uma massa para que o movimento tivesse uma aceitação geral da população. (PEREIRA, 2020)
No contexto da Assembleia Constituinte de 1988, a visão de Jung nos permite compreender como os organizadores do movimento foram capazes de mobilizar a população brasileira ao apelar para arquétipos comuns e símbolos culturais compartilhados. Os apelos à liberdade, justiça e democracia, por exemplo, ativaram arquétipos de luta pela igualdade e pela realização de um ideal coletivo.
Desta feita, Jung enfatiza a importância dos líderes carismáticos na formação e mobilização das massas, destacando sua capacidade de personificar e canalizar os arquétipos coletivos. Nesse sentido, figuras como Ulisses Guimarães, Tancredo Neves e outros líderes políticos personificaram o período denominado como Redemocratização (Fausto, 2006) podem ser vistos como expressões dos arquétipos do herói ou do salvador, que foram cruciais para inspirar e unir a população em torno de um objetivo comum.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao percorrer as intricadas sendas da formação e legitimidade do poder estatal, este artigo proporcionou uma análise que transcendeu as fronteiras tradicionais entre filosofia, política e psicologia. O entendimento da evolução dessas dinâmicas ao longo do tempo e sua manifestação em diferentes regimes políticos e estruturas democráticas revelam a complexidade subjacente à legitimação do poder estatal.
A jornada iniciou-se na antiguidade, onde mitos e conquistas territoriais eram pilares da formação dos Estados, evoluindo para a sofística na Grécia antiga, onde Sócrates e seus discípulos introduziram a busca pela verdade e conhecimento como elementos fundamentais da legitimidade. As contribuições de pensadores como Hobbes e Weber, na modernidade, ampliaram o escopo ao incorporar o contrato social e a legalidade racional como alicerces da aceitação das leis.
A incursão na "Psicologia das Massas e a Análise do Eu" de Freud trouxe à tona os mecanismos psíquicos que permeiam regimes autoritários, populistas e paternalistas. A identificação narcísica, a manipulação emocional e a busca por figuras paternalistas foram analisadas em relação à formação do Estado, contribuindo para uma compreensão mais profunda das dinâmicas que moldam as leis e a constituição.
A transposição dos conceitos freudianos para o cenário democrático destacou a importância da participação ativa dos cidadãos na formação do Estado. A identificação coletiva com valores e lideranças políticas emergiu como fator crucial para a coesão social e a legitimidade do poder estatal. A psicologia das massas ofereceu uma lente valiosa para decifrar a influência da dinâmica psicológica na aceitação voluntária das instituições democráticas.
Assim, ao concluir esta análise interdisciplinar, é imperativo reconhecer a universalidade e a duradoura relevância desses insights filosóficos, políticos e psicológicos na compreensão das complexas relações entre o indivíduo, a coletividade e o Estado. A legitimação do poder estatal não é um fenômeno estático; é uma tapeçaria em constante tecitura, entrelaçando-se com a história, a cultura e as aspirações das sociedades.
Ao unir os fios de filosofia, política e psicologia, podemos vislumbrar uma compreensão mais holística da legitimidade do poder estatal. Nesse emaranhado teórico, somos levados a constatar que a legitimidade do poder estatal reside na força que fundamenta a Constituição. Essa força se manifesta por meio de um vínculo afetivo complexo, que envolve elementos libidinosos e narcísicos nas relações entre líderes e liderados. Nesse contexto, a coletividade encontra a oportunidade de canalizar o ódio decorrente de cicatrizes passadas e proteger-se de receios presentes e futuros.
A busca incessante pela verdade, o papel central da participação cidadã e as dinâmicas psicológicas coletivas convergem para moldar o tecido político que sustenta as sociedades contemporâneas. Este exercício de análise crítica, ancorado em diversas disciplinas, contribui para desvendar os mistérios subjacentes à legitimação do poder estatal, oferecendo uma visão mais completa e esclarecedora para as questões prementes de nosso tempo.
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é Advogado (OAB/CE: 29.591).Com bacharelado em Direito, possui uma ampla formação acadêmica e especializações em diversas áreas do Direito, incluindo: Direito Digital, Direito Civil e Processual Civil, Direito do Consumidor e Direito de Trânsito. Possui Licenciatura em Sociologia e títulos de Especialista em Gestão Educacional com ênfase em Direção, Coordenação e Supervisão e Especialista e em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, atuando profissionalmente na Educação de Jovens e Adultos. É Pesquisador, Instrutor e Produtor de Material Didático para Cursos Livres em diversas áreas do conhecimento.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, André Jales Falcão. A Constituição no Divã: A origem da Legitimidade Constitucional à luz da Psicologia das Massas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jun 2024, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /65077/a-constituio-no-div-a-origem-da-legitimidade-constitucional-luz-da-psicologia-das-massas. Acesso em: 28 dez 2024.
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